Mil ofensas ao corpo e ao futuro
- Lucas Liberato
- 2 de jun.
- 4 min de leitura
É difícil construir uma vida da qual não se queira fugir.
Eu sei bem disso, pois foi um desafio com o qual lidei durante muito tempo mesmo. E não é fácil, sequer perceber que saímos desse modo de operar e estamos, enfim, gozando — sorrindo — os frutos do esforço que fizemos para nos retirarmos de qualquer lamaçal em que fomos criados.
Esses “lamaçais” têm muitas formas. Podem ser violências, físicas, emocionais, sociais. Como uma areia movediça, muitas circunstâncias nos afogam de tal maneira que só percebemos que estávamos presos a elas quando já não estamos mais.
Quem sofre vive apenas no presente — o futuro é um luxo para poucos. E é exatamente essa lógica que eu questiono e busco modificar.
O presente não é suficiente. Mas sonhar com um futuro também não significa deixar de viver no agora.
Porque o agora é o terreno do corpo — da corporeidade, da dança, do gozo. O presente é onde podemos gozar sorrindo.
No presente, temos a oportunidade de prestar atenção nessa “terceira pessoa” que habita nossas mentes — essa figura com quem estamos sempre comparando nossas vidas.
“E se alguém visse, soubesse, ouvisse?”, nos pegamos pensando.
E jogamos essa pressão sobre o tecido de nossas vidas — que se esgarça sob o peso de expectativas que, muitas vezes, nós mesmos inventamos e sustentamos.
Uma vida consciente do presente, mas informada por uma ousadia de futuro, é uma vida que desafia essas narrativas de fim do mundo, que cada vez mais povoam nosso imaginário e nos colocam numa mentalidade derrotista frente à vida.
O mundo sempre esteve acabando. Como tema, o “fim do mundo” faz parte da mitologia de grande parte das civilizações ao longo da História.
Isso não significa adotar uma postura irresponsável frente aos desafios ambientais que nossa época traz. Mas sim, adotar uma perspectiva mais realista quanto à nossa posição frente a esse desafio: não vamos melhorar a situação adotando uma postura que não imagina um futuro. Pelo contrário, estaremos apenas assistindo derrotados enquanto poderíamos estar dançando até que se feche a pista — o que provavelmente não acontecerá durante o tempo de vida de todas as pessoas que estão vivas nesse momento em que escrevo.
Se não há um futuro, que diferença faz me dedicar a isso ou aquilo?
Se não há um futuro, por que plantar uma árvore cujo fruto ninguém vai comer?
Essa lógica só é útil àqueles que buscam nos dominar. É um ato revolucionário e de libertação transpor essa lógica e se permitir tomar o futuro em nossas mãos e ousar imaginar uma outra realidade — um futuro em que nós sejamos melhores como espécie, como humanidade, como pessoas.
Se já entendemos que não podemos esquecer o passado, porque aceitamos abrir mão de imaginar o futuro?
Haverá um amanhã, seja ele qual for. A realidade seguirá existindo — haverá algo aqui. E esse algo não está dado: está em construção. Cabe a cada um de nós, como membros da espécie humana, imaginar um futuro individual e um futuro coletivo, do qual somos todos criadores em conjunto.
Saindo do campo da ideia, do qual tão frequentemente somos reféns, é na consciência da experiência do corpo — do riso, do tesão, da dança, da comunidade, do olhar, do frio e do calor, do gozo e da gargalhada — que nos humanizamos e podemos vislumbrar um futuro.
Um futuro em que teremos mais disso e daquilo que nos molda, como a argila humana que somos, em um material de futuro. Uma possibilidade de sermos hoje, mas também amanhã.
É urgente, para nossa saúde, estimular um certo assombro frente à vida. Olhar pras coisas como quem se espanta, com um sobressalto de novidade. Aquele que olha com atenção pras coisas, mesmo as mais comuns, percebe uma camada de espetáculo até na folha que cai devagar da árvore. A vida é cheia de estreias para quem se permite ver.
Talvez aí resida o brilho maior da infância, que em algum momento nos abandona: as crianças ainda não foram domesticadas pelo cansaço. Elas veem o mundo com olhos de estréia, acreditam em possibilidades, criam amigos imaginários e futuros absurdos. As crianças sonham com o futuro, o que serão quando crescerem, a possibilidade de ser grandes é uma gravidez de futuro. O que chamamos de maturidade muitas vezes é só a nossa desistência da imaginação. Mas imaginar ainda é uma das formas mais poderosas de existir.
Para quem é uma pessoa queer: precisamos ousar imaginar um futuro em que somos queers de uma forma que ainda não nos foi possível. Queer como aquilo que é estranho, incomum, que não se encaixa nas expectativas que a sociedade impõe sobre nós. Ousar amar, olhar, agir e existir no mundo, além do que esse outro imaginário espera de nós.
Que no mês do Orgulho LGBTQIAPN+, cada um de nós possa se permitir imaginar novas formas de ser quem somos. E que você, eu, cada um de nós consigamos gozar sorrindo da maravilha de materializar essas novas realidades.
Nosso corpo já ouviu tantas ofensas. Algumas vieram em palavras, outras em silêncios. Vieram da escola, da família, da igreja, dos olhares. Imaginar um novo futuro para cada um de nós é um ato de cura para todas as violências que sofremos e que foram memorizadas por nossos corpos, como ofensas pelas quais ainda estamos chorando por dentro. Mas o corpo também tem memória de prazer, de encontro, de possibilidade. Que possamos cultivar mais dessas lembranças — porque elas também são sementes de futuro. E porque, no fim, o corpo quer dançar. E dançar, às vezes, é uma resposta política.
Celebrar a vida — e o futuro — é um ato de cura.
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