Etceteras
- Lucas Liberato
- 25 de mai.
- 4 min de leitura
Escrito ao som dessa playlist.
Hoje, quando acordei, senti o travesseiro frio junto ao meu rosto.
No quarto em penumbra, um perfume suave de conforto. O som do ventilador de teto, acordo com o pensamento limpo como o papel diante do poema.
Coloquei minha mesa de costas para a janela. A luz me abraça suave — mais intensa pela manhã, mais delicada à tarde. O Sol tem essa fortuna de fazer as coisas parecerem cheias de boas notícias, não tem?
Imagino que continuar, apesar de tudo, é mesmo necessário. E essa continuidade é uma escolha que insiste em se refazer, dia após dia.
Domingo é o dia oficial do “me deixa ser feia!”, e eu abraço meu direito de estar um bagaço.
Tenho andado em alta velocidade. Tanta coisa acontecendo, que por vezes perco o senso de direção.
Percebo que a vida não tem quinas. Ela persevera nas beiradas das coisas, é importante não deixar que se façam poças de vida parada.
Por que é que eu venho aqui falar contigo? Porque domingo dá um negócio, né?
Tem outro lugar, outro domingo da sua história, em que o Sol também estava assim — iluminando uma outra versão de você, quando as coisas eram muito diferentes?
Aprendi uma forma de ser eu mesmo que é mais gentil comigo — e mais honesta com o que proponho ser.
Tento, da forma mais sincera que conheço, comparecer à minha própria vida.
É com essa intenção clara que começo a semana: sabendo quem sou, olhando para o outro e agindo com intenção.
Viver uma vida da qual não se queira fugir — (na maior parte do tempo) — é um propósito perfeitamente válido.
Às vezes me confundo: será que preciso me permitir ou me proibir?
Haveria alguma graça nas coisas que evitamos ver?
Respeitar o fluxo é das coisas mais finas que existem.
“Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo:
‘Coitado, até essa hora no serviço pesado.’
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.”
Ensinamento, de Adélia Prado
A maior parte do que escrevo tem poucos dentes.
Estou aprendendo, eu espero.
Tento, no dia a dia, dar contorno consciente ao que digo.
Cada palavra vira uma nova oportunidade.
De tal forma que, a todo momento, eu esteja mesmo olhando nos seus olhos — literal ou figurativamente.
Muitas etcéteras.
“Você não precisa ser bom.
Não precisa andar de joelhos
por cem milhas pelo deserto se arrependendo.
Apenas permita que o suave animal do seu corpo
ame o que ama.
Fale-me sobre o desespero, o seu, e eu lhe contarei o meu.
Enquanto isso, o mundo continua.
Enquanto isso, o sol e as claras pedrinhas da chuva
movem-se pelos cenários,
sobre as pradarias e as florestas profundas,
as montanhas e os rios.
Enquanto isso, os gansos selvagens, lá no alto do limpo ar azul,
estão voltando para casa novamente.
Quem quer que você seja, não importa quão solitário,
o mundo se oferece à sua imaginação,
chama por você como os gansos selvagens, ásperos e excitantes –
repetidamente anunciando seu lugar
na família das coisas.”
Gansos Selvagens, de Mary Oliver
Coloquei um espelho de corpo inteiro na sala, oposto à porta de entrada.
A bruxa em mim achou que era bom já refletir tudo aquilo que nem deveria entrar.
Essas coisas — de nós, garotas místicas.
E olha: passei anos olhando no espelho só pra escovar os dentes, e olhe lá.
Seria tolice pensar que era mesmo uma questão estética.
É dessas coisas estranhas: olhar nos próprios olhos.
Mas não dá pra fugir disso, né?
Veja — você vai ter que continuar existindo de dentro de si mesmo.
Precisa tornar essa experiência ruim, ainda por cima?
Que audácia a minha: não me deixar ser definido pelos medos que tenho de não estar sempre certo das coisas.
Estou sempre errando — como quem está sempre fazendo algo pela primeira vez.
E não pense que me envergonho disso, hoje em dia.
É tão mais fácil dizer algo usando as palavras dos outros.
Parafrasear é compartilhar do vinho da palavra.
“Os alunos do sexto ano de uma escola em Montevidéu organizaram um concurso de novelas. Todos participaram.
Os jurados éramos três: o professor Óscar, punhos puídos, salário de faquir; uma aluna, representante dos autores; e eu.
Na cerimônia de premiação, proibiu-se a entrada dos pais e demais adultos.
Nós, jurados, lemos a ata, que destacava os méritos de cada trabalho. O concurso foi ganho por todos, e cada premiado recebeu uma ovação, uma chuva de serpentinas e uma medalhinha doada pelo joalheiro do bairro.
Depois, o maestro Óscar me disse:
– Nos sentimos tão unidos que me dá até vontade de fazê-los repetir o ano.
Uma das alunas, que viera da zona rural para a capital, ficou conversando comigo.
Disse que, antes, não falava nem uma palavra — e, rindo, explicou que o problema agora era que não conseguia mais calar.
E me disse que gostava do professor, gostava muuuito, porque ele a havia ensinado a perder o medo de errar.”
O Professor, de Eduardo Galeano.
Em algum momento — até bastante recente — ganhei um senso de inevitabilidade quanto a ser adulto.
Uma autoconsciência um tanto bruta, que fala comigo como se tivesse direitos sobre mim.
Todo mundo parece estar sendo adulto melhor do que nós.
Mas, no fundo, todo mundo também está fazendo isso pela primeira vez — todo dia.
Estou cuidando e vivendo meu ofício, atendendo meus pacientes online, como sempre.
Organizo a expansão do meu trabalho para uma clínica com outros profissionais.
Faço um mestrado em Ciência Política.
E, no tempo que sobra, deixo vários outros pratos caírem pelas outras áreas da vida.
E faço questão de seguir gozando com a vida sempre que posso.
Estou tentando ser honesto sobre isso — e sobre tudo o mais.
Muitas etcéteras.
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